As alterações climáticas, um dos desafios mais significativos do nosso tempo, têm um impacto profundo e diversificado nas sociedades de todo o mundo. É esta base plural – essa mudança climática desigual, nas palavras de Tsing – que nos leva a preferir o termo “alterações climáticas” como forma de acentuar as variadas manifestações locais deste fenómeno global. Com o seu vasto conhecimento da experiência humana, das práticas culturais e dos sistemas sociais, a antropologia está bem colocada para compreender as intrincadas ligações entre as alterações climáticas e as sociedades num mundo mais que humano, mas precisa de reivindicar um maior espaço de visibilidade no seio das ciências. Ao mesmo tempo, a alteração climática – ou as mudanças climáticas – implicam um importante desafio epistemo-metodológico para a nossa disciplina, uma vez que trazem uma nova reviravolta à necessidade de atender à sobreposição, nas realidades micro-sociais que estudamos, de uma multiplicidade de escalas (Alexiades, 2018) e de processos de transformação ambiental em que uma multiplicidade de factores entra em jogo de forma não linear (Ruiz-Ballesteros, 2013; Tsing et al., 2019).
Aceitando este desafio, a disciplina tem vindo a desenvolver nas últimas décadas um campo de investigação cada vez mais específico. Neste sentido, têm sido três os principais interesses de investigação naquilo a que cada vez mais se chama “antropologia climática”: a perceção e o conhecimento local das alterações climáticas; as estratégias de adaptação e mitigação; e a interação entre a imposição de políticas públicas para a transição climática e as respostas/reações locais (Baer e Singer, 2018; Hoffman et al., 2022). No âmbito ibero-americano, ainda são poucos os trabalhos publicados que abordaram explicitamente o fenómeno (Cortés-Vázquez et al., 2020), algo que contrasta com as fortes raízes que a antropologia ambiental adquiriu nos últimos 15 anos. A nossa proposta pretende ser um pequeno passo na criação de espaços de reflexão que promovam a inserção da investigação produzida no âmbito da Rede de Antropologia Ambiental nos debates que estão a florescer em torno da emergência climática e dos seus múltiplos efeitos.
Que perspectivas únicas aporta a antropologia para a compreensão dos aspectos sociais e culturais das alterações climáticas? A densidade proporcionada pelo trabalho de campo antropológico e o seu amplo envolvimento com as interacções entre a sociedade e o ambiente podem gerar conhecimentos úteis. Pode também fornecer um registo pormenorizado da forma como as pessoas interagem com o seu ambiente e são influenciadas pelas alterações climáticas (Keleman-Saxena, 2020). A etnografia e o trabalho antropológico podem contribuir para melhorar a compreensão dos impactes das alterações climáticas e das políticas (Barnes et al. 2013). Por outro lado, à medida que nos debatemos com as suas complexidades, o conhecimento antropológico é crucial para o desenvolvimento de soluções eficazes e culturalmente sensíveis. Ao compreendermos as dimensões sociais, culturais e históricas das alterações climáticas, podemos dar voz a outros conhecimentos e formas de produção de conhecimento e incluir diferentes experiências e percepções diversas, a fim de facilitar processos de decisão mais democráticos no futuro.
Os principais objectivos deste encontro são:
a) Discutir até que ponto e onde a antropologia pode contribuir (e como) para os debates académicos, científicos e sociais sobre as alterações climáticas.
b) Encontrar e conhecer outros investigadores e projectos de investigação em torno das antropologias e etnografias que lidam com as alterações climáticas.
c) Promover e comunicar uma posição colectiva (uma carta/manifesto final que agregue reflexões) e uma linha de ação.
Estes objectivos requerem, portanto, um debate disciplinar e interdisciplinar que, por um lado, valorize o papel da antropologia em relação às alterações climáticas e, por outro, a ponha em diálogo com outras disciplinas. A fim de aprofundar, partilhar e debater ideias sobre áreas temáticas consolidadas e emergentes, propomos abordar os seguintes eixos estratégicos durante o encontro:
1. Uma antropologia das políticas públicas com implicações para a adaptação, mitigação e justiça climática:
Que leituras críticas das políticas de transição climática e dos seus efeitos podemos oferecer a partir da perspetiva da antropologia?
Que formas de governação climática têm sido promovidas? Como podem estes processos de decisão e implementação de acções climáticas ser etnografados e problematizados a partir de uma perspetiva sociocultural?
2. Percepções e conhecimentos sobre as alterações climáticas e práticas informais e comunitárias de adaptação face aos impactos das alterações climáticas:
Quais são os contributos dos estudos realizados em diferentes comunidades (rurais, urbanas, indígenas, tradicionais) e grupos socioculturais sobre a perceção, experiência direta e documentação dos impactos e respostas aos fenómenos relacionados com as perturbações climáticas? Em que medida foram associados a diversas formas de exploração, exclusão social e vulnerabilidade?
De que forma incorporar os novos encontros em relação com o não humano? Que alianças com o não-humano são activadas ou evidenciadas pelas alterações climáticas e que discursos e práticas geram?
3. Ação colectiva e novos imaginários face às emergências climáticas:
Como são gerados e reproduzidos novos grupos de ação colectiva, narrativas e/ou iniciativas comunitárias face à emergência climática? Como podem ser abordados na perspetiva da etnografia e que posição pode o etnógrafo assumir nestes processos?
Que processos e dispositivos mobilizam e imobilizam acções e movimentos e de que forma? Como é que a eco-ansiedade, o negacionismo ou as agendas políticas reaccionárias influenciam as (des)mobilizações sociais em torno da emergência climática?
Sob os auspícios da Rede de Antropologia Ambiental, reunir-nos-emos presencialmente de 6 a 8 de junho de 2024 em Sevilha. Este encontro que propomos tem uma vocação marcadamente orientada para o debate horizontal. É por isso que nos afastamos do modelo clássico de apresentação de comunicações para propor um formato que favorece a troca intensa de ideias através do trabalho em pequenos grupos orientado e estimulado por perguntas. Dedicaremos os dias 6 e 7 a este debate, enquanto na manhã do dia 8 faremos uma saída de campo para fundamentar as questões abordadas e desfrutar de um passeio em conjunto. Encorajamos os e as antropólogas de todas as áreas da disciplina e todos os interessados a contribuírem com as suas experiências e/ou preocupações para este importante debate. As vossas ideias podem ter um impacto significativo na nossa compreensão colectiva das alterações climáticas e na nossa resposta às mesmas.
Para participar, deve preencher este formulário com os seus dados pessoais, a escolha de 2 dos 3 eixos de debate propostos e uma breve descrição do seu interesse em cada um deles (200 palavras). A data limite para o envio das manifestações de interesse é 29 de fevereiro de 2024. A fim de incentivar a participação, a inscrição no evento é gratuita. A comissão organizadora está também a tentar encontrar financiamento para cobrir as despesas dos participantes que se encontrem em situação precária. Assim que tivermos a certeza das possibilidades orçamentais, confirmaremos essa possibilidade de oferecer assistência financeira para a viagem e/ou o alojamento.
Comissão Organizadora
Rosângela Corrêa (Universidade de Brasília), David Florido del Corral (Universidad de Sevilla), Maite Iglesias Buxeda (Universidad Pablo de Olavide, de Sevilla), Paolo Macri Antkiewicz (Centre de Ciència i Tecnologia Forestal de Catalunya | Universitat de Barcelona), Ernesto Martínez Fernández (Universidad de Sevilla | Centro em Rede de Investigação em Antropologia), Francisco J. Maya Rodríguez (Universidad Pablo de Olavide, de Sevilla), Rui M. Sá (Centro de Administração e Políticas Públicas | Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade de Lisboa | Associação Portuguesa de Antropologia), Mar Satorras Grau (Institut Metròpoli – Universitat Autònoma de Barcelona).
Referências
Alexiades, M. (2018). La antropología ambiental: una visión desde el Antropoceno. En B. Santamarina, A. Coca y O. Beltran (coords.), Antropología ambiental. Conocimientos y prácticas locales a las puertas del Antropoceno (pp. 17-70). Icaria.
Baer, H. A. y Singer, M. (coords.) (2018). The anthropology of climate change. An integrated critical perspective. Routledge.
Barnes, J., Dove, M., Lahsen, M., Mathews, A., McElwee, P., McIntosh, R., Moore, F., O’Reilly, J., Orlove, B., Puri, R., Weiss, H. y Yager, K. (2013). Contribution of anthropology to the study of climate change. Nature Climate Change, 3, 541-544.
Cortés-Vázquez, J. A., Martins, H. & Mendes, P. (2020). Antropología y cambio climático: recorridos, temáticas y propuestas. Disparidades, 75(2), e015.
Hoffman, S. M., Eriksen, T. H. y Mendes, P. (coords.) (2022). Cooling down. Local responses to global climate change. Berghahn.
Keleman-Saxena, A. (2020). A view from a patch: Toward a material phenomenology of climate change. Feral Atlas. Disponible en: https://feralatlas.supdigital.
Ruiz-Ballesteros, E. (2013). Socioecosistemas y resiliencia socio-ecológica: Una aproximación compleja al medio ambiente. En E. Ruiz-Ballesteros & J. L. Solana (coords.), Complejidad y ciencias sociales (pp. 295-331). UNIA.
Tsing, A., Bubandt, N. & Mathews, A. (2019). Patchy Anthropocene: Landscape structure, multispecies history, and the retooling of Anthropology. Current Anthropology, 60(Suppl. 20), S186-S197.